Quando tudo começou a mudar
A morte estava apenas a alguns metros de mim, eu conseguia sentir isso. Eu – mais apavorado do que já estivera em toda a minha vida -, tinha apenas uma coisa em mente, uma única e pulsante palavra – que provavelmente era o que me mantinha vivo -, correr.
O que quer que fosse – ou quem fosse – que estivesse me perseguindo, só não me encontrara ainda graças às árvores daquele abençoado lugar – eu não teria dito isso há apenas algumas horas. Suas copas altas eram tão densas e próximas, que apenas feixes de luz solar conseguiam penetrá-las, tornando o lugar um pouco sombrio, e elevando a tensão em meu corpo.
Por reflexo, olhei para trás tentando enxergar uma sombra ou vulto, mas nada estava lá, não havia sequer um mosquito zanzando como bobo. Olhei também para a direita e para a esquerda, mas a floresta estava em silêncio, como se a coisa que estava me caçando a tivesse feito silenciar. Me senti um pouco mais seguro, e diminui o passo de corrida desabalada para um caminhar tenso – teria que fazer isso mais cedo ou mais tarde, pois uma dor forte do lado do meu corpo começava a latejar. Tentei controlar meus batimentos cardíacos acelerados respirando fundo, fiquei algum tempo nisso, me perguntando o que era a coisa que me fizera fugir como o diabo da cruz.
Um pouco mais calmo, me sentei embaixo de um enorme carvalho de aparência extremamente antiga e comecei a pensar na maneira mais fácil de sair daquele lugar – que mais parecia um labirinto, era tudo igual! Comecei a remexer nas folhas mortas e nos gravetos secos que estavam no chão. Me lembrei então que tinha uma coisa me caçando e parei.
Então ouvi algo que me deixou atento, um estranho som de trituração. Olhei por sobre o ombro de trás de árvore e tive o desprazer de constatar que a coisa estava vindo numa velocidade um pouco alarmante em minha direção. Antes que pudesse me controlar minha respiração acelerou subitamente, e quando eu percebi o que estava fazendo, já havia saído meu esconderijo. Tentei correr, mas minhas pernas pareciam ser feitas de chumbo puro, quase entrei em pânico e logo percebi que simplesmente do nada minhas pernas destravaram. Corri desesperadamente e me vi passando por uma espécie de portal feito por duas árvores que haviam se entrelaçado uma na outra. Conforme eu me aproximava, a claridade aumentava, fazendo meus olhos arderem barbaramente, um barulho ensurdecedor entrando por meus ouvidos.
Um pequeno fio de esperança surgiu em meu peito, quando consegui ultrapassar o “portal”, pois aquela poderia ser a saída daquele lugar seguindo o seu curso. Quando parei para olhar onde estava, me deparei com algo inimaginável. A minha esquerda havia uma gigantesca queda d’água – devia se dali que vinha o barulho que eu ouvira antes -, de onde pequenas gotículas de água gelada se desprendiam como uma nevoa e acertavam de leve em meu rosto; à direita, nada, a não ser um pedaço de céu; e abaixo – uns dez metros para ser mais exato -, um rio onde a cachoeira desaguava. O som que a queda d’água produzia era monstruoso, e o cheiro do lugar era estranho – uma mistura de vegetação, água e dejetos de animais.
O pequeno fio que havia surgido, desapareceu. Chateado, cansado, suado e estressado – uma péssima combinação -, fui me arrastando de volta para a floresta quente e abafada. Teria que achar outra saída daquele rascunho de inferno agora, andar mais não sei quantos quilômetros até sair dali. Ia atravessar o tal “portal” quando o vulto disforme apareceu, saindo de dentro da floresta, vindo em minha direção. Engoli em seco e mordi o lábio inferior.
O sobretudo negro esvoaçava ao menor movimento do estranho, longos cabelos louros caiam-lhe sobre os ombros; sua cabeça estava baixa – meio curvada como um corcunda -, como se estivesse procurando algo muito pequeno no chão imundo. Ela – agora eu sabia que era uma mulher – era um pouco mais alta que eu – coisa de centímetros -, e tive a sinistra sensação de que a conhecia de algum lugar, só não lembrava de onde. Ela continuou andando em minha direção, e mesmo tendo a sensação de que a conhecia, caminhei para trás, em marcha ré, até onde não havia mais chão – este terminava em um pequeno penhasco, de nada mais nada menos de dez metros de altura -; ela parou a menos de dois metros de mim.
O sol estava encoberto pelas nuvens – uma coisa raríssima em Newcastle -, e deixava o clima menos quente. O vento que a queda d’água produzia, fazia o cabelo da mulher esvoaçar levemente, deixando um inebriante aroma floral no ar.
A estranha levantou a cabeça então, revelando sua face e finalmente confirmando minhas suspeitas sobre eu conhecer sua identidade. Era Abe Accioli, irmã de minha madrasta.
Abe estava parada como uma estátua de mármore belíssima, sorrindo – seus dentes eram perfeitos e claros -, e revelando a melhor parte de sua beleza toscana. Sua pele tinha um tom de giz, muito branco; seus lábios eram cheios e rubros; o corpo estava meio escondido pelo sobretudo, mas ainda se via suas curvas bem desenhadas; seus cabelos eram louros e sedosos, brilhando mesmo sem a presença do sol. Mas o melhor eram seus olhos. Seus belos olhos ametista, estranhamente roxos e incrivelmente enigmáticos.
Me senti o mais imbecil dos imbecis dos idiotas, e fiquei meio vermelho só de olhá-la. Me aproximei dela com três passos largos.
- Abe, porque não me avisou que era você? Se eu soubesse não teria fugido como um besta... – comecei, com a voz fraca de alívio.
Minha frase foi interrompida pelo sol que conseguiu finalmente transpassar as nuvens, pegando todo o espaço em que estávamos, e iluminando o belo rosto de Abe.
A bela mulher havia desaparecido, e em seu lugar surgira algo que eu jamais vira ou sonhara em toda a minha vida.
Sua antiga e perfeita face havia desaparecido, dando lugar á algo que parecia ser feito completamente de carne apodrecida e talvez um pouco queimada, tinha um estranho tom de cor enegrecido – mas conforme o sol batia, se alternava em tons de verde -, com uma aparência definitivamente repulsiva. O nariz e a boca haviam se extinguido, deixando um enorme e medonho buraco que parecia não ter fim visível. Os antigos cabelos louros pareciam ter se enfiado para dentro do crânio novamente, assim como a orelha, deixando apenas aquela carne nojenta e asquerosa á mostra. Onde antes havia belas curvas, agora só existia uma coisa esfumaçada, como um corpo, só que frágil demais, me dando a sensação de que o sobretudo podia cair de seus ombros a qualquer segundo e aquela coisa parecia não respirar, me causando calafrios.
O pior de tudo, não foi à carne podre, o corpo esfumaçado ou a boca desaparecida. Não... o pior foram os olhos. Antigamente roxos e enigmáticos agora estavam amarelos, vivos e intensos de tal maneira que o sol parecia uma lâmpada perto daquilo. Também não existiam pupilas, dando uma aparência vidrada a eles. Eles pareciam emanar calor por si só, tanto que senti uma queimação por dentro, começando pelos órgãos e se espalhando rapidamente.
Eu não tinha idéia do que era aquela coisa, mas sabia que era maldita e que a repulsa e o nojo que me causavam não era algo normal. Senti que cada partícula do meu ser começou a entrar em pânico, fazendo-me pensar na hipótese de me jogar de cima do penhasco onde eu estava a cada segundo que se passava.
Conclui que tinha duas saídas possíveis, já que aquela coisa bloqueava minha passagem para o “portal”. Lancei um olhar para a água que corria forte abaixo de mim, e calculei que ficaria inconsciente e muito machucado ou morreria se pulasse. Então, como única saída óbvia, decidi enfrentar o bicho.
Fechei os olhos por uma fração de segundo e respirei profundamente, ao abri-los, me deparei com a múmia – era o que mais se aproximava, com o pequeno detalhe de que múmias são mais bonitas – quase em cima de mim. Assustado, voltei alguns passos cambaleantes, pisando num chão que eu me esquecera que não existia, e... cai.
Os sons da água e do vento açoitaram meus ouvidos, enquanto a água se aproximava avassaladoramente de mim, fechei os olhos. Não queria que eles estivessem abertos caso eu morresse, morto de olhos abertos é muito estranho! Puxei uma golfada de ar para dentro dos pulmões, para o caso de sobreviver à queda, e senti uma vontade estranha – e fora de hora – me inundar. Antes que pudesse reprimi-la, ou fazer qualquer coisa, o espirro se formou e meus olhos se abriram. Eu estava á poucos metros da água agora. Me preparei para o forte impacto, e espirrei...
Meu rosto estava colado na mesa com o meu suor, eu me sentia... quente, e estranhamente observado. Desgrudei o rosto da mesa e olhei em volta para saber o que estava acontecendo. Todos me olhavam como se eu tivesse um enorme bico de tucano costurado no meio da testa. Instintivamente olhei para o lado, onde estava Vince Without – meu melhor amigo. Ele não me disse uma só palavra, os olhos azuis estavam abismados – assim como sua face -, percorrendo a sala de aula. Ele apontou para o quadro negro, os olhos me perguntando alguma coisa.
Vi algo que jamais pensei que um dia sequer vislumbraria numa sala de aula da Howard High School. A fileira de mesas que deveria estar na minha frente estava quase toda caída para os lados, assim como seus donos de expressões pasmas. Uma das mesas fora mais longe e entrara no quadro negro, ficando pendurada lá como se esse fosse seu lugar habitual. Sem saber o que fazer, e respirando com dificuldade, peguei minha mochila e a joguei nos ombros, saindo da sala como um raio com Vince em meus calcanhares. Desci um lance de escadas e disparei pelo corredor do segundo andar, indo em direção ao próximo no fim do mesmo, quando V me alcançou e me puxou pelo braço.
- O que exatamente foi aquilo? – ele não tinha o tom brincalhão de sempre.
- Aquilo o que? – retruquei com excesso de ignorância.
- Ah, não sei... – escarneceu ele. – Talvez o fato de você espirrar e meia sala ir pelos ares...
- Eu... espirrei? – perguntei lentamente.
- Não, o ministro espirrou! – objetou V sarcasticamente. – Claro que você espirrou, porque acha que aquele monte de urubus estavam te olhando como se você estivesse pelado com uma melancia no pescoço, pensou que estivesse te admirando?
- Há, há... estou me destrinchando de tanto rir, Vince – revidei secamente.
O sinal tocou, anunciando o almoço. Aproveitei para fugir de Vince e suas perguntas, descendo as escadas voando e entrando no primeiro banheiro que encontrei. Vince seguiu para o refeitório.
Abri a torneira da pia de granito escuro e lavei as mãos, olhei então para a água e lavei o rosto quente e grudento. Peguei um papel e o sequei, me olhando num dos espelhos, o que tinha as beiradas rachadas. Eu definitivamente estava parecendo um trapo - acho que não ficaria tão ruim se fosse atropelado sete vezes por uma manada de búfalos enraivecidos -, meu rosto branco como mármore – apesar de morar em Newcastle a uns dois anos – estava extremamente vermelho, como se eu tivesse acabado de correr. Minhas pupilas estavam dilatadas, deixando meus olhos castanho-esquisitos com uma estranha aparência de olho de gato assustado. Meus cabelos – indecisos entre o enrolado e o liso de cor indefinida -, que viviam espetados com gel, agora estavam caídos e murchos, deprimentes. Passei a mão molhada pelos fios, tentando ajeitá-los e sai em direção ao refeitório – que com certeza já estava quase lotado.
Respirei algumas vezes parando rapidamente a porta do refeitório e a empurrei, tentando ignorar os olhares que me seguiam – as notícias ruins são as que correm mais rápido. Andei por entre as mesas, tentando não esbarrar em ninguém, me juntando à mesa onde já se encontravam todos os meus amigos. Me sentei sem dizer palavra alguma, e logo todos dispararam com as perguntas:
- É verdade Teddy? Você arremessou mesmo uma fileira de mesas pela sala toda? – perguntou Carter Foruser, o editor chefe do jornal do colégio, em um tom saliente.
- Ouvi dizer que você estava dormindo... Você é sonâmbulo? – perguntou Lucy, a namorada dele, parecendo interessada.
- E-eu... Eu não sei... – gaguejei, olhando para as expressões de cada um. – Eu não... me lembro.
Polly me olhou de sobrancelhas erguidas, será que ela percebera a mentira em meu tom de voz? Não sabia dizer, então tirei a responsabilidade de explicar aquela anormalidade de mim.
- Mas o V viu tudo – Vince, que estava dando em cima de algumas garotas, me olhou com azedume -, ele pode explicar tudo a vocês, não é V?
Vince não respondeu, só me lançou um olhar mortal com o canto dos olhos enquanto Polly, Carter e Lucy se viravam para ele e eu pegava um dos refrigerantes ainda fechados da mesa. Ao meu lado estava a irmã adotiva – e quase minha irmã também – de Vince, Cameron, sorrindo um pouco forçada demais, como quando estava preocupada.
- Você esta meio vermelho sabia? – perguntou ela, tentando me fazer rir.
Balancei a cabeça confirmando, meio rabugento demais, então ela tentou mais uma vez, mais séria.
- Com o que você esta tão preocupado?
- Não estou preocupado! – menti, tomando um gole de refrigerante.
- Você esta sim – murmurou ela me atravessando com os olhos, e confirmando a própria tese.
Essa era uma das coisas que eu mais admirava em Cameron, ela era perceptiva, sacava minhas emoções como ninguém, me conhecia como se eu fosse à palma de sua mão. Dei um leve suspiro e arriei os ombros, olhando-a mais um pouco.
Seus belos cabelos castanhos e levemente ondulados estavam soltos sobre os ombros, como duas cortinas emoldurando seu rosto – branco, mais não tanto quanto o meu – incrivelmente doce e sincero, com um meio sorriso de dentes bem alinhados, quase perfeitos. Os olhos eram castanho-caros e profundos, com uma cor única de chocolate ao leite que eu nunca vira em mais ninguém. Aqueles olhos pareciam ver por dentro de mim, não importava o que eu fizesse.
Percebi que havia recomeçado a suar, as gotas escorrendo pelo meu rosto quente. Cameron me olhou de soslaio.
- Bom, já que você não vai falar comigo, pelo menos vá a enfermaria. Você esta com uma aparência um pouco doente! – ela usou um tom desgostoso.
- Não preciso de enfermaria nenhuma! – murmurei irritado, me levantando bruscamente e saindo de perto dela.
- Teddy, pelo amor de... – começou ela, mas deixei-a falando sozinha.
Eu sabia que pagaria o preço, e Cam provavelmente ficaria uns bons quinze dias sem falar comigo, mas isso não era de vital importância agora. Eu não queria ter descontado meu estresse nela, mas Cam não entendia que eu estava confuso e transtornado por causa do que acontecera na sala de aula da História há apenas alguns minutos.
Sai do refeitório sob os olhares dos outros estudantes – alguns cochichavam e percebi que a tese oficial era que eu havia tido um ataque de fúria e atirara as mesas na parede com as mãos, mas eu sabia que fora um espirro que causara aquilo – e um par de olhos verdes me chamou atenção. O dono deles parecia curioso com o que estava acontecendo e ao mesmo tempo, desinteressado. Logo vi que era um dos típicos “carinhas isolados” do colégio, o garoto depressivo que sempre esta prestes a se matar.
Comecei a andar pelo terreno amplo do colégio e já estava sozinho a mais de dez minutos quando finalmente meu cérebro começou a raciocinar de verdade. Várias perguntas pairavam na superfície da minha mente. O que havia acontecido? Como era possível eu ter espirrado e as mesas da sala terem saído voando? Por que isso estava acontecendo? Será que eu ainda estava sonhando...?
Soltei um grunhido de frustração e percebi que as perguntas só estavam me fazendo pirar mais. Era melhor como estava antes, sem pensamentos. Era melhor ficar sem uma resposta.
Finalmente olhei para onde ia e me deparei com a porta do vestiário masculino poucos metros à minha frente. Lembrei-me então que minha próxima aula era de Educação Física – meu cérebro devia ter registrado o fato enquanto eu tentava achar uma explicação racional para o que acontecera na sala. Entrei no vestiário fui ao meu armário, troquei de roupa e esperei. Esperei mais ou menos a eternidade, até que bondosamente o sinal tocou anunciando o fim do almoço.
Tínhamos dez minutos de intervalo para chegarmos á aula, então me arrastei para o ginásio, onde Cameron e Lucy conversavam aos cochichos algo que nem se eu fosse uma mosca, eu seria capaz de entender naquele momento – o turbilhão de pensamentos em minha mente teimava em continuar quente. Peguei uma bola de basquete num canto e comecei a arremessar em direção ao aro. Eu sempre fui péssimo em basquete, tanto que, a bola bateu na tabela e voltou para mim. Tentei novamente, com mais esperança e errei de novo, o que me fez chegar à conclusão de que era melhor desistir. Fui me sentar nas arquibancadas, um pouco afastado das garotas.
Quando o sinal tocou outra vez, mais gente entrou – a maioria correndo um pouco por pensar estar atrasado -, completando a turma. Carter veio se sentar perto de mim, eu estava silencioso como um túmulo, olhando para as portas duplas fixamente como um bobo. O volume das conversas estava altíssimo, mas baixou quando entrou no ginásio alguém que com certeza não era o Treinador Phantom.
Ela tinha cabelos longos, num tom de castanho-arruivado que combinava com ela e com certeza ficaria estranho em outra mulher. Tinha um corpo musculoso – mas não excessivo – como o de todo professor daquela matéria. Os olhos eram castanho-claros, num tom parecido com o meu – primeira vez que encontro alguém que compartilhe a cor dos meus olhos. A pele era branca e perfeita, como se a mulher tivesse acabado de sair da Sibéria – ou do Alaska. Seus lábios eram rubros e cheios, mas de uma forma natural, nada daquele tipo que se consegue em clinicas estéticas.
Ela andava de um jeito meio atípico para uma professora de educação física, parecia estar flutuando. Foi então que a mulher parou com as mãos nos quadris e uma expressão decidida no belo rosto.
- Bom, meu nome é Anne Fine, sou a nova Treinadora do colégio! – Ela abriu um sorriso tão branco que chegou a ofuscar.
- Onde esta o Treinador Phantom? – inquiriu o arrogante, mimado e insuportável, Joel Newcastle.
- Não gostei do seu tom garoto! – observou ela – Quem é você?
- Joel Newcastle, e acho que todos nós gostaríamos de saber o por que de trocarem de professor em novembro, a apenas três semanas do fim das aulas! – Sua “gangue” confirmou com a cabeça e com alguns grunhidos, mas foram apenas eles.
- Como posso explicar? – se perguntou ela. – Ah... sim. Bom, o Treinador Phantom teve um probleminha com a perna e o colégio me ligou, porque não queria deixá-los sem aula, ai eu vim.
Minha impressão sobre a professora Fine fui muito boa, ela parecia ser bastante bem humorada, ao contrário do Phantom. Qual seria a opinião do resto do pessoal?
- Agora – recomeçou ela, elevando a voz, pois as conversas estavam recomeçando -, gostaria que vocês se dividissem em grupos de... seis – ela contara rapidamente –, e que alguém do grupo venha aqui e pegue uma cor de braçadeira...
- Para que exatamente? As aulas normalmente são separadas... – interrogou a voz insuportável de Joel.
- Garoto – disse a professora Fine num tom baixo e paciente – você acha que só porque o Phantom lambe o chão que você pisa, porque seu pai é milionário, e porque você tem o nome da cidade você é mais importante que alguém aqui? Se enganou, você é um aluno e me deve respeito, portanto fique quietinho ai antes que eu te suspenda. E a aula de hoje vai ser mista!
Todo mundo ficou em silêncio, alguns queixos até caíram. Quase ninguém que eu conhecia naquele colégio tivera coragem de falar assim com Joel, ele intimidava as pessoas, as ameaçava, as humilhava e fazia uma infinidade de coisas que o dinheiro é capaz de fazer. As únicas pessoas que já haviam acabado com ele daquela maneira, havíamos sido meus amigos, eu e algumas outras pessoas que sabiam pensar por si mesmas. Agora ele estava pasmo como se tivesse acabado de ser esmurrado por Anne Fine, uma estranha que acabara de conquistar meu respeito. Por isso era bom aparecer gente nova de vez em quando, alguém para colocar aquele merdinha no lugar dele. Lancei um olhar maldoso á Joel e ri com o canto da boca.
- Como eu ia dizendo – continuou a nova professora como se não tivesse havido interrupção -, se dividam em grupos mistos de seis pessoas, e venham pegar uma cor de braçadeira. Alguém aqui já jogou queimada?
Eu nunca ouvira falar e uma boa parte da classe também não, portanto o interesse foi geral e até mesmo Joel – que devia estar planejando a melhor forma de demitir a professora, mesmo esta sendo substituta – se dispôs a escutar as regras. Elas eram três, e bem simples: um, não ultrapassar a divisão dos campos; dois, acertar os elementos do time adversário com a bola eliminando-os; três, apenas as mãos não valiam com parte “quente”, ou seja, critério de eliminação.
Estávamos num time incrível, todos nós juntos. Nomeamos Carter como capitão e eu consegui esquecer por algum tempo meus problemas. Cameron parecia animada para “queimar” alguém, e até eu me animei um pouco. A Treinadora sorteou as cores, para minha sorte era eu contra Joel – ou vermelho contra verde.
- Quando eu apitar, vocês correm para pegar a bola no centro da quadra – bradou a Treinadora. – Ah... e quem acertar o Newcastle, já tem nota comigo para o próximo ano!
Achei estranho ela dizer isso sendo apenas substituta, mas me animei em acertar a cara de Joel – que praguejava em voz baixa – e constatei que o dia ficara estranhamente mais bonito – acabar com Joel em qualquer coisa levantava meu astral. A professora contou três e apitou.
Cameron foi a mais rápida – por incrível que pareça -, pegou a bola e mirou certeira no rosto de Joel – ele puxou Drew para frente e conseguiu se proteger da bolada -, que pegou a bola e acertou o ar. Ri com vontade e dei um adeusinho para ele, enquanto Carter acertava Sharp Ring – um dos capangas de Joel – no meio das costas.
O jogo foi transcorrendo muito bem, apenas Vince e Lucy haviam sido “queimados” e agora Joel estava sozinho do outro lado da quadra. Cameron quase o queimara mais duas vezes – ele pusera mais amigos na frente - e era ela que estava com a bola, esperando o melhor momento para atacar. Ela arremessou de repente, errando por centímetros. Joel a pegou, e avaliou quem estava menos atento no momento...
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, uma sensação poderosa me inundou, bloqueando meu cérebro e meus sentidos. Meus olhos se fecharam instintivamente e logo comecei a puxar o ar para dentro; minha cabeça rodou e eu simplesmente espirrei.
Senti o ar explodir a minha volta, e quando abri os olhos, reinava um pandemônio. Havia uma cratera de um diâmetro imenso partindo do exato lugar onde eu estava. Das janelas altas do ginásio, só restavam cacos de vidro, que caiam como chuva sobre meus colegas nas arquibancadas. Os outros jogadores estavam caídos no chão e a bola com a qual estávamos jogando estava enfiada na parede oposta do ginásio, com se ali fosse seu lugar habitual, percebi que Joel a havia arremessado em mim. Uma das portas duplas do ginásio não estava mais lá, parecia ter sido arrancada e jogada longe, muitos metros para frente.
Comecei a tremer enquanto todos os olhares do recinto convergiam para mim. Levei as mãos acima da cabeça um pouco chocado com o que acabara de acontecer e simplesmente corri. Como se não houvesse nada para trás, como se nada importasse, eu corri. Senti minha cabeça começar a rodar de repente, e respirei fundo enquanto ânsias tomavam meu estômago. O que diabos estava acontecendo comigo? Como uma reação tão humana como espirrar podia ter um efeito daquele? Uma destruição como aquela? O que era tudo aquilo...
Bati a cara em um tronco de árvore e vi que meu cérebro voltara a funcionar novamente quando a dor me fez voltar a pensar. Me sentei no chão cheio de folhas mortas sob a copa da imensa árvore perto da saída do colégio, mas que não me deixava visível a ninguém.
Milhares de outras perguntas pipocaram minha mente, onde as mais importantes eram se eu machucara alguém e o que todos estariam pensando de mim.
“Que você é louco!”.
Disse uma voz estranha em minha mente. Suspirei, e senti lágrimas escorrerem de meus olhos sem saber o motivo. Eu não sou do tipo que chora muito, mas minha raiva era muito intensa para que eu simplesmente ficasse tremendo. Fiquei um bom tempo sentindo as lágrimas escorrerem, em silêncio, minha mente vazia, até que uma voz doce me chamou, vinda da minha direita.
- Tinha certeza de que você viria para cá! – o tom de Cameron era compreensivo, não acusatório como eu esperava.
- Meu cérebro... – murmurei com a voz estranha. – Olha, e-eu não tenho idéia do que aconteceu naquele ginásio. Sei que não é normal, mas... n-n-não sei explic...
- Teodore Jason Zuiker – disse ela severamente -, todos notamos que você estava mais apavorado do que todos nós juntos. Percebemos que você não tinha idéia do que estava acontecendo... Então, por favor, não pense que vamos nos afastar de você pelo que aconteceu, seja lá o que tenha sido.
As palavras dela ma fortaleceram um pouco e ela me puxou pela mão me abraçando logo em seguida aquela declaração de amizade. Fosse o que fosse que estivesse acontecendo comigo, eu não estaria sizinho para enfrentar, teria meus amigos, e isso me reconfortava no momento. Depois do que me pareceram horas e segundos ao mesmo tempo, nosso abraço se desfez, quebrando algo invisível que eu sentia acabar de se formar. Cameron sorriu.
- Agora que esta melhor, você vai para casa descansar! – Fitei-a com uma sobrancelha erguida, mas ela me entrou em retângulo de papel branco, com uma assinatura me informando: - Dispensa especial!
Peguei o papel que ela me estendia e ela me passou um livro de capa dura e meio esbranquiçada que eu não notara antes.
- Para que o livro?
- Bom, a professora Fine disse, abre aspas, “se ele quiser te falar depois, ok, mas por enquanto apenas entregue o livro!”, fecha aspas. Ai eu trouxe para você, ela disse que ia ajudar a entender.
Sorri bobamente e peguei uma de suas mãos.
- Obrigado! – sussurrei.
Me levantei e andei de volta para dentro do colégio com ela. Entrei no vestiário e peguei minhas coisas. Apenas um pensamento flutuava a superfície de meu cérebro superlotado agora, como eu tinha sorte de conhecer Cameron Without.